Investigação revela que 2/3 dos adolescentes portugueses já foram vítimas de agressão na escola
Piadas de mau gosto, humilhações, tentativa de controlo e perseguição fazem parte da realidade da maioria das crianças e jovens nas escolas portuguesas. É este o resultado de uma grande investigação da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, que analisou a violência entre alunos dos 12 aos 18 anos entre 2018 e 2022.
Os resultados de uma investigação da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) falam por si e fazem soar campainhas: 68% dos adolescentes portugueses já foram vítimas de comportamentos agressivos em contexto escolar. Os dados apontam para uma prevalência da violência interpessoal em escolas do ensino básico e secundário de Portugal Continental e dos Açores. Dos 7139 jovens que participaram na investigação, de ambos os sexos e com idades entre os 12 e os 18 anos, 68% (4837) revelam ter sido vítima de algum comportamento de agressão. Por outro lado, um número não muito diferente (64%, correspondente a 4634 jovens) assume já ter praticado algum ato violento para com um colega.
Os dados em causa foram recolhidos entre 2018 e 2022, no âmbito do PREVINT, um programa de prevenção da violência interpessoal implementado em mais de uma centena de escolas, abrangendo cerca de 20 000 estudantes. A amostra é das maiores em estudos similares, o que deixa adivinhar o real cenário nas escolas.
“Os atos de agressão, quer sejam perpetrados ou recebidos, acontecem de uma forma transversal em todos os anos de escolaridade e em ambos os sexos. Estes dados foram recolhidos em 61 estabelecimentos do 2.º e 3.º ciclo do ensino básico e secundário”, afirma ao DN o investigador da UTAD, Ricardo Barroso, que coordena este trabalho. De acordo com o relatório final, os comportamentos de vitimação mais reportados são, em 92% dos casos, de natureza psicológica (como piadas agressivas, ignorar, culpar, mentir ou enganar), seguindo-se os de natureza física (pontapés, beliscar ou arranhar, ferir a brincar) com 82%. E há ainda outro dado preocupante: 62% já foi vítima de algum tipo de controlo. Além disso, também se verificam comportamentos associados ao cyberbullying e de partilha de imagens íntimas sem consentimento (sexting) com uma prevalência de 58%. E embora com menor frequência, a verdade é que, nesta investigação, não deixam de ser relatados os comportamentos tendencialmente mais graves: ameaçar com objetos ou armas, causar uma lesão corporal grave, o que já aconteceu com 38% dos jovens inquiridos.
A banalização da violência psicológica
Quando os jovens protagonizam comportamentos de agressão, estes são essencialmente de teor psicológico. Ignorar, fazer piadas agressivas, ridicularizar/humilhar em público, mentir ou provocar ciúmes, foi relatado por 88% dos casos. Neste início de ano letivo, Joana (chamemos-lhe assim), 16 anos, aluna com necessidades educativas especiais, foi o alvo dos colegas na turma numa escola secundária de Leiria. Procedia-se à eleição do delegado de turma quando, na contagem dos votos, o nome dela apareceu subitamente como o mais votado. Os colegas riam, numa atitude provocatória. A professora, e diretora de turma, cancelou o ato (repetindo-o na semana seguinte) e ficou sem saber o que fazer. “Por um lado não queria expor a Joana, por outro não podia deixar impune uma situação destas”, conta ao DN a mãe da jovem. A família, imigrante do Brasil, está em Portugal há dois anos. Ao longo dos últimos anos letivos já foram várias as situações reportadas aos pais desta adolescente, por colegas ou por professores. “Ela não tem nenhuma deficiência visível, tem apenas o que na gíria se considera um atraso de compreensão, fruto de algumas dificuldades cognitivas”, acrescenta a mãe, que prefere o anonimato. Mas casos como o de Joana são relatados amiúde, e encaixam no protótipo de violência psicológica focado nesta investigação da UTAD. Há ainda os ataques de natureza física (pontapés, beliscar ou arranhar, ferir a brincar) e os de controlo (controlar ou proibir, stalking [perseguir]), com 84% e 55%, respetivamente. Há também registo de comportamentos associados ao cyberbullying e ao sexting (58%) e os comportamentos tendencialmente mais graves (ameaçar com objetos ou com armas, causar uma lesão corporal grave), com 33%, e de natureza sexual, com 3%, apesar de ocorrem com menor frequência, não deixaram de ser reportados pelos adolescentes.
A psicóloga Rute Agulhas não desvaloriza a importância de sensibilizar e consciencializar não só os jovens, como os adultos à volta, mas sublinha que “esse é apenas um primeiro nível, que muitas vezes é insuficiente para que se operacionalizem mudanças ao nível dos comportamentos”. Defende por isso “um trabalho mais aprofundado com estes jovens, mais numa perspetiva de treinar com eles competências, da tolerância à frustração, controlo das emoções, gerir a impulsividade e gerir conflitos de forma assertiva; trabalhar esta perspetiva dos direitos e do outro. E isto implica um trabalho de capacitação que está no nível seguinte”. Esta especialista fala na importância de “um trabalho mais dirigido em termos de intervenção, e que à partida gera maior probabilidade de haver mudança de comportamento”, mas enfatiza sobretudo a necessidade de “um trabalho sistémico, programas de prevenção e intervenção que envolvam todos os intervenientes”. Quer com isto dizer que “não podemos só pensar nos jovens e nas escolas. Temos de pensar também nas famílias, numa perspetiva comunitária. E isso é algo que precisa de ser melhorado”, conclui.
Dados mantêm-se ao longo de anos
“Verificámos que são dados que se mantêm constantes ao longo dos anos e embora em termos sociais se valorize mais o facto de existir violência física, uma prevalência tão elevada de violência psicológica é algo que nos preocupa, uma vez que esta tende a estar na base do sofrimento psicológico elevado dos adolescentes. A existência de trabalhos de prevenção e de intervenção junto dos adolescentes é tão crucial como junto dos pais/tutores e dos profissionais que trabalham em contexto escolar”, afirma Ricardo Barroso. O investigador trabalha há vários anos no PREVINT — Programa de Prevenção da Violência Interpessoal, vocacionado para a população juvenil (entre os 12 e os 18 anos). Trata-se de um programa de intervenção concebido na UTAD, e que pretende sensibilizar os adolescentes para a dinâmica do funcionamento da violência nas relações interpessoais. “Compreendendo como funcionam os processos de agressão (inicialmente de âmbito psicológico e podendo, ao longo do tempo, evoluir para a violência física), é possível capacitar os jovens para antecipar e/ou acabar com esses comportamentos de forma mais rápida e eficaz, evitando assim o seu aumento”, considera aquele responsável. Concebido pelo Aggression Lab da UTAD, o PREVINT tem sido implementado, desde 2016, em mais de uma centena de escolas do País, envolvendo cerca de 20 000 estudantes. Este ano já estão inscritas 32 escolas, do continente e ilhas. O mecanismo é simples. “A escola inscreve-se na formação, a seguir estudamos uma amostra naquela escola, fazemos um relatório e avaliamos a necessidade de intervenção”, explica Ricardo Barroso. A equipa integra seis elementos, quase todos bolseiros de investigação. Na UTAD, este programa ficou conhecido como “violentómetro”, “porque numa das sessões utilizamos uma régua que tem uma escala da progressiva gravidade dos comportamentos”, explica o investigador.
“Há um padrão de violência na intimidade”
Ricardo Barroso, professor da UTAD, alerta para naturalização da violência e pede estabilidade nos programas de intervenção.
Depois deste estudo, qual foi o resultado que mais o surpreendeu?
Talvez haja aqui duas coisas que mais me tenham surpreendido. A primeira é a naturalização de muitos comportamentos. Há muitos que estão enraizados no nosso quotidiano, que são claramente de agressão e violência psicológica, mas não são entendidos como violência. Depois há outro: eu não tenho ideia nenhuma de estarmos a lidar com uma adolescência dramática e adolescentes problemáticos, antes pelo contrário. Parece-me mesmo que esses jovens estão cada vez melhores, mais informados, uma geração muitíssimo mais esclarecida do que as anteriores. Porém, há aqui um padrão de manutenção de violência nas relações de intimidade. Ou seja, há um conjunto de ideias de controlo que prevalece como o proibir, o stalking, o controlar o telemóvel, o que outro veste, a utilização dos ciúmes como manipulação emocional, etc.
E isso são comportamentos que se mantêm “estáveis” há muito tempo?
Há demasiado. Apesar de todas as campanhas e programas de intervenção.
Isso quer dizer que as campanhas não estão a resultar?
A mim parece-me que o que se está a fazer resulta para determinado tipo de comportamentos, mas não para outros. E é importante perceber que há aqui um aspeto bidirecional – não são só os rapazes que se mostram mais violentos com as raparigas, mas também o contrário, ou melhor, a violência é transversal às questões de género.
E como é que se consegue alterar isso?
Há aqui necessidade de duas coisas: primeiro de programas que sejam testados e considerados eficazes; um segundo ponto parece-me que tem de ser uma estabilidade e continuidade das intervenções. Porque o que temos atualmente são intervenções esporádicas, que tendem a ser muito focalizadas – como assinalar os dias contra a violência – mas depois há um conjunto de variáveis que contam. Depende muito, por exemplo, se a equipa de psicologia continua no ano seguinte, da continuidade do projeto do conselho diretivo… Imagine que vamos intervir nos miúdos do 7.º ano, que têm 13 anos em média. Achar que com isso eu faço uma mudança comportamental é muito ingénuo. O que preciso, na verdade, é de ter um plano de reforço. Muitas vezes no âmbito do nosso programa usamos a metáfora da vacinação, isto para dizer que têm de haver doses de reforço destes programas ao longo dos anos, devidamente adaptados à idade e ao período de desenvolvimento que eles vão atravessando. Para mim, esse é o problema: alguma desorganização na continuidade do processo de intervenção.
Ou seja, uma intervenção sistemática e não esporádica?
Há um aspeto crucial que é ir avaliando os resultados, ajustando à realidade. Não é por eu ter um programa muito bom em Viana do Castelo que depois o adapto a Faro. Não pode ser um trabalho isolado (tem que envolver a escola e a família), mas também não pode ser a pulverização de intervenções que muitas vezes acontece. E não é por haver essa pulverização que está a haver eficácia na resolução do problema.
E como é que se consegue travar, a montante, essa escalada de violência psicológica?
Julgo que é exatamente pela organização. Não é uma questão de mudar a agulha, mas antes a forma como está a ser utilizada. Não é por haver a pulverização de intervenções que está a acontecer que será mais rápido. Por vezes há essa ideia de “quanto mais melhor”. A mim parece-me que o problema reside numa desorganização e falta de continuidade de intervenções. Porque pessoas capacitadas para o fazer, nós temos. Depois, não se pode pensar que é suficiente criar ações isoladas nos dias disto e daquilo. É uma pequena gota de água na resolução dos problemas.
Fonte: Investigação revela que dois terços dos adolescentes já foram vítimas de agressão na escola (dn.pt)