
‘Mãe, posso pão?’, ‘Professora, posso água?’ As nossas crianças estão a ‘comer’ os verbos e isso pode ser um problema
Economia de palavras, preguiça linguística ou simplesmente uma fase natural do desenvolvimento. As crianças do pré-escolar e do primeiro ciclo estão a suprimir os verbos principais de algumas frases, usando só os auxiliares. Psicólogos, professores e linguistas divergem no grau de preocupação, mas concordam que não se pode ignorar o elefante na sala.
Alexandra Cleto, 48 anos, é professora do primeiro ciclo do Ensino Básico. Todos os dias entram na sala de aula 25 crianças de oito anos e o alvoroço é, inevitavelmente, grande. Hoje, o dia é de festa, há um aniversariante na sala e trouxe bolo de iogurte. É um bolo simples, mas delicioso e há quem não resista a uma segunda fatia.
“- Professora, posso mais uma fatia?
– Podes, mas tens de me pedir com a frase dita corretamente?
– Professora, posso mais uma fatia, por favor?
– Está melhor, porque acrescentaste o ‘por favor’, mas ainda lhe falta um verbo…
– Eu sei, eu sei, professora! Posso ter mais uma fatia, por favor?
– Sim, Mariana. Acrescentaste um verbo à frase do Martim e a frase está mais correta, mas ainda não é o verbo ideal…
– Pode dar-me mais uma fatia, professora?
– Sim, Sofia. Eu dou-te mais uma fatia, mas ainda não é esse o verbo ideal… O que é que vocês vão fazer com a fatia de bolo que vou dar a cada um de vocês?
– Vamos tê-la.
– Pois vão… e ficam com ela e não lhe fazem mais nada?!
– Vamos comê-la!
– Ahhhh! Então como é que se diz aquela frase de forma mesmo correta?
– Professora, posso comer mais uma fatia de bolo, por favor?”
Alexandra Cleto garante que o quadro se repete todos os dias na sua sala de aula. Nem sempre o objeto de desejo é o bolo de iogurte, mas a frase com o verbo auxiliar e sem o verbo principal é o prato do dia. “É um fenómeno generalizado. Dizem: ‘professora, posso folha?’, ‘professora, posso casa de banho?’, ‘professora, posso água?’. Já tenho instituído na minha sala que, enquanto não falarem como deve ser, não fazem nada e não têm nada”, assegura Alexandra Cleto, acrescentando que começou a notar este “fenómeno de economia linguística” há “uns sete ou oito anos” e que o mesmo “tem vindo a agravar-se”.
A professora fala em “preguiça linguística”, relata um aumento da pobreza de linguagem nos seus alunos e diz-se “preocupada” com a situação, porque sente que isso se está a transferir para outras situações mais formais do que a oralidade do dia a dia, como a apresentação de trabalhos e as provas escritas. “Têm muita dificuldade em formar frases corretas, em organizar ideias. E não eliminam só os verbos. Eliminam os verbos, os determinantes e outros elementos que tornam as frases mais corretas ou enriquecedoras”, sublinha.
É um problema? A que se deve?
Alfredo Leite, licenciado em Psicologia e professor universitário, pai de três filhos, a mais nova com dez anos e a viver em pleno esta “economia linguística”, partilha das preocupações da professora Alexandra Cleto.
“Tem sido geral. Tenho relatos de Norte a Sul do país. Há uma componente cultural de economia linguística natural. Tem sido reforçada pela negativa por este modelo de comunicação que nós temos acelerado. Não é preguiça dos miúdos, mas é o reflexo do ambiente que vão tendo à volta. Há uma tendência para a economia linguística porque queremos tudo para ontem. Se disséssemos que nós, adultos, temos um dia a dia calmo, não vivemos apressados, não apressamos as nossas crianças… mas ninguém na terceira década do século XXI pode dizer que vive assim”, considera o especialista.
“Acho que a culpa é nossa… da sociedade. Não é especificamente dos pais, dos professores ou dos educadores. Somos nós, sociedade, que andamos apressados e sempre ligados. Estamos a usar os smartphones como em tempos usámos o tabaco. Não sabíamos que matava. O mau uso das novas tecnologias tem algum peso. Este excesso de estímulos digitais está ligado a este estilo de vida apressado”, argumenta.
A docente universitária Sandrina Esteves testemunha diariamente nas escolas, onde acompanha os estágios das alunas que hão de vir a tornar-se professoras do Ensino Básico e educadoras de infância, e em casa, onde a filha de três anos lhe pede ‘Mãe, por favorzinho, posso gomas?’, com os olhos e a boquinha do gato das botas e as mãos meticulosamente posicionadas em prece.
“Em termos daquilo que vou acompanhando nas escolas, sem dúvida que é uma situação que se verifica no pré-escolar e no início do primeiro ciclo. Vejo alguns motivos para isso acontecer: em primeiro lugar, a economia linguística. As crianças ainda estão numa fase de aquisição da linguagem, faz parte do processo e do desenvolvimento, a retirada de alguns elementos que não são fundamentais para a comunicação. É característico desta faixa etária não haver um domínio pleno da sintaxe gramatical. E, depois, a influência da língua materna. Cada vez mais estão a chegar às escolas crianças de outros países em que o Português, variante europeia, não é língua materna. Por exemplo, uma das maiores comunidades imigrantes com crianças nesta faixa etária é a comunidade cabo-verdiana. O ‘posso pão’ é uma estrutura típica do crioulo cabo-verdiano. As crianças nesta faixa etária são muito influenciadas pela aprendizagem pelos pares”, explica Sandrina Esteves, professora no Instituto Superior de Educação e Ciências (ISEC).
Sandrina Esteves dá outro exemplo de alterações linguísticas adotadas pelas crianças e que comprovam a sua teoria: “Outro fenómeno que está a acontecer muito é o uso do pronome antes do verbo, por exemplo ‘me dá’, em vez de ‘dá-me’. Mas se calhar ninguém valoriza tanto, porque encontra logo a explicação no facto de verem muitos vídeos em português do Brasil e terem muitas crianças brasileiras nas salas de aula.
A especialista em língua portuguesa desvaloriza, ainda assim, a questão. “Não entendo como um fenómeno, muito menos como um fenómeno nocivo”, assume. Sandrina Esteves encara-a antes como natural. Comparável à conjugação errada dos verbos irregulares que as crianças do pré-escolar, naturalmente, utilizam.
“É uma situação contextualizada e está muito restrita numa faixa etária que ainda está a adquirir a linguagem. Por exemplo, as crianças na faixa etária do pré-escolar, têm adquiridas as conjugações verbais regulares, mas ainda não adquiriram plenamente a conjugação dos verbos irregulares. Não dizem ‘mãe, eu disse que sim’. Dizem ‘mãe, eu dezi que sim’. Equiparo a questão do ‘posso pão’ a esta questão. Tenho uma visão muito positiva das coisas e não vejo isso como um risco. Acho importante a exposição a uma linguagem correta, mas, se calhar, não é propriamente um fenómeno. Se calhar, é uma fase típica do desenvolvimento infantil, que implica essa economia de linguagem”, sublinha.
A visão de Sandrina Esteves é partilhada pela escritora e também docente de Língua Portuguesa e Literatura Infantil no ISEC, Sara Almeida Leite. Também esta especialista encontra justificações claras para a situação e não se mostra preocupada com a economia dos verbos principais adotada pelos mais novos. “É uma tendência muito interessante e engraçada”, considera. “Não diria que é necessariamente má, a não ser que se generalize e aplique esta regra de economia de linguagem em todos os contextos e todas as situações, tanto formais como informais de comunicação. A não ser que as crianças falem assim com os seus pares, com os seus familiares, num contexto de oralidade, mas também transportem esta forma de falar para contextos como apresentar um trabalho na escola ou no envio de um email com um trabalho para a professora.”
“Acho que este fenómeno está mais ligado ao imediatismo da comunicação que se quer rápida e eficaz. Querem ver o seu pedido satisfeito rapidamente. Acaba por ser uma ‘esperteza saloia’ de ‘eu consigo que a minha mãe diga que sim, me responda rapidamente e não tenha tempo para pensar!’”, acrescenta Sara Almeida Leite.
“Acho que, com a maturidade, acabam por perceber que esse linguajar não é para levar para contextos mais formais”, acredita a escritora e especialista em língua portuguesa.
Numa análise mais detalhada do fenómeno, Sara Almeida Leite nota que este parece “estar muito associado ao uso do verbo poder como verbo auxiliar” e, portanto, com a intenção da criança de obter alguma coisa. A docente universitária sublinha que “não deixa de existir verbo”. “Estas frases não são totalmente absurdas. São perfeitamente eficazes do ponto de vista da comunicação. Mas não são eficazes do ponto de vista do bom uso da língua. Semanticamente, não há nenhum problema. Gramaticalmente, sim, temos um problema”, analisa.
Implicações na vida social e escolar
Se as especialistas em língua portuguesa não se mostram preocupadas com a questão, o psicólogo Alfredo Leite mostra-se (muito) mais reticente. Para o também docente universitário, que leciona Psicossociologia das Relações Interpessoais na Escola Superior de Saúde de Alcoitão, a questão da linguagem é fundamental para o saudável convívio em sociedade e para uma correta expressão das emoções. “Se aprofundarmos, esta questão pode até ser relacionada com o bullying. Uma criança que tem alguma dificuldade em comunicar, vai ter alguma dificuldade em defender-se. Mas também pode tornar-se num agressor, porque é uma criança com dificuldade em gerir as emoções. Está relacionada com a comunicação, no sentido de eu comunicar com o outro, mas até no sentido de eu comunicar com o meu interior”, defende.
“Se quisermos ir mais longe, se um homem conseguir dizer ‘Amor, peço desculpa, eu estou muito frustrado, o trabalho hoje correu-me mal’, isso reduz conflitos entre casais, não é? Mas nós não sabemos falar assim. Se temos as emoções cá dentro e não as conseguirmos expressar corretamente, vamos perder a capacidade de comunicar com o outro e as nossas relações vão sair prejudicadas”, acrescenta.
Para Alfredo Leite, que fundou o centro de desenvolvimento de competências Mundo Brilhante, o problema vai muito além da simples “evolução da língua”: “Penso que é realmente um problema e temos de lhe dar atenção.”
O especialista justifica a sua preocupação. “Esta questão está associada a uma pobreza de linguagem. E preocupa-me que ao nível do próprio raciocínio já comecem a ter dificuldades. Se pensarmos que a linguagem é a base do pensamento, se têm uma linguagem pobre, vão ter um pensamento pobre. A linguagem molda o cérebro, portanto, também acredito que, no futuro, venhamos a ter problemas ao nível do próprio desenvolvimento cerebral. Preocupa-me ainda ao nível da saúde mental: quem comunica de maneira deficiente, terá baixa autoestima e vai ter dificuldades relacionais e sociais”, sublinha.
Alfredo Leite teme que, se os problemas de linguagem das crianças não forem travados a tempo, as implicações se possam estender para a vida adulta. E as crianças que agora dizem ‘mãe, posso pão?’ tenham, daqui a 20 anos, problemas no mundo do trabalho. “Os miúdos não vão ser bons profissionais se não souberem comunicar. Há jovens atualmente que estão a ser despedidos porque não sabem falar. Se não forem corrigidas, estas crianças vão ter dificuldade em escrever, em fazer uma apresentação, numa entrevista de emprego, dentro da empresa, se conseguirem ser contratados. As empresas que funcionam, as instituições que funcionam não abdicam disto: falar bem e expressar-se bem”, alerta, acrescentando que “há crianças e jovens que estão a trabalhar estas competências e essas vão ultrapassar as outras”.
“Independentemente de ser típico de uma fase etária ou não, não devemos ignorar. Se ignorarmos agora, pode agravar-se”, resume.
“Para já, não há o risco de ser integrado nas gramáticas porque são só crianças. À medida que vão crescendo, começam a falar corretamente. Acredito que só correríamos o risco de isto vir a ser integrado nos livros e nas gramáticas se os adultos começassem a falar assim nos meios de comunicação social e nas redes sociais”, considera Sara Almeida Leite.
“Não veio para ficar enquanto estrutura”, assegura Sandrina Esteves.
A professora universitária lembra que “uma língua que não se transforma é uma língua que vai acabar por morrer” e acrescenta que a variante europeia do Português vai, inevitavelmente, adotar outras formas de falar e de escrever que irá beber às variantes de outros países que têm a língua portuguesa como língua oficial. E a falta de professores que assola Portugal pode ter alguma responsabilidade no assunto. “Está em cima da mesa professores dos PALOP virem ajudar a suprir esta crise de professores. Temos alunas aqui no ISEC cuja língua materna é Português variante brasileira, por exemplo. Elas vão ser professoras do Ensino Básico e educadoras de infância. É natural que um dia venham a influenciar os alunos delas nesta componente da comunicação e não há mal nenhum nisso”, diz.
Corrigir ou não, eis a questão
Sandrina Esteves considera que é importante “expor as crianças a ambientes linguísticos ricos e diversificados” e quanto ao ‘mãe, posso pão?’ não defende que se ignore, mas também não defende que se corrija: “Defendo a modelação. Dar o modelo e não corrigir. Ser exemplo. Quando propomos a correção para o erro estamos a contribuir para a cristalização do erro.”
Nisso, por razões diferentes, quer as especialistas em língua portuguesa, quer o especialista em Psicologia estão de acordo. Ignorar não é a solução, mas é preciso cuidado com a forma como se corrige. “Temos de ter cuidado com as palavras. Devemos dar o nosso melhor exemplo, sem criticar, sem achincalhar, sem sermos irónicos, como tantas vezes temos tendência a fazer. Se não tivermos cuidado na correção, pode ser contraproducente. Precisamos que os miúdos falem, que comuniquem connosco”, sublinha Alfredo Leite, alertando que a correção desadequada pode ter um efeito pernicioso e levar as crianças a retraírem-se e a evitarem falar.
Então, como corrigir os nossos filhos? O psicólogo responde com um exemplo: “A pessoa ouve a frase e repete-a da forma correta. ‘Mãe, posso folha?’ e responde ‘Sim, filho, claro. Posso dar-te uma folha!’ ou ‘Claro filho, podes usar uma folha!’. Falar bem é fundamental até para nós adultos. Devemos aproveitar essas oportunidades para também nós falarmos bem.”
Além da inevitável correção, Alfredo Leite acrescenta ainda outras estratégias para evitar ou travar este fenómeno. Afinal de contas, “todos precisamos de falar e de falar corretamente”.
Entre as estratégias, está respondermos sempre aos nossos filhos “com frases completas” e motivá-los para a leitura. “Temos de oferecer aos nossos filhos e aos filhos dos nossos amigos livros. Bons livros. Os pais têm de ter um livro preferido e os filhos devem saber que livro é esse. As crianças devem ter os livros à mão e não ‘trancados’ numa estante. Devemos contar histórias aos nossos filhos – ler-lhes histórias e contar-lhes histórias das nossas vidas”, aconselha.
Alfredo Leite sublinha ainda que “temos de recuperar o hábito de ler à frente dos nossos filhos”. “Vejo muita gente a ler no comboio. Mas e depois? Leem em casa, à frente dos filhos? Os nossos filhos vão ler se nos virem ler”, frisa.
“Outra dica é termos em casa um dia da semana em que desligamos a televisão e os telemóveis e conversamos com os nossos filhos e jogamos jogos de tabuleiro, porque temos de ler instruções, definir estratégias, comunicar”, lembra o especialista.
A professora Alexandra Cleto sabe bem o que é ter crianças na sala de aula que não falam com os pais em casa. Todos os dias vive essa realidade: “As crianças podem ir para a escola às 07:30 e muitas vão e estão lá até às 19:30. Doze horas. Como não há adultos suficientes para os apoiarem, eles falam uns com os outros. Aprendem a falar uns com os outros. Depois, vão para casa e os pais estão tão ocupados que pouco ou nada conversam com eles.”
“Este ano, converso mais com os meus alunos, porque era uma turma mais conflituosa. É uma turma de miúdos que atravessaram a pandemia naquela fase dos três aos seis anos, que é uma fase crucial do desenvolvimento deles. Falo mais com eles e pergunto-lhes como foi o fim de semana e eles não sabem! Não sabem porque, mesmo que tenham ido passear com os pais, andaram todos calados, de cabeça baixa e olhos no telemóvel”, relata a professora.
Fonte: CNN PORTUGAL